top of page

Minha avó, dona Ignêz Luzia Branco, foi uma pessoal fantástica. Além de mim, criou cinco filhos e uma neta. Foi dona de casa exemplar e ensinou tudo que sei sobre como cuidar de uma casa, como cozinhar, como cultivar todos os tipos de plantas e, acima de tudo, como tratar os outros bem. Fazem seis meses que ela faleceu, aos 82 anos, e a falta que faz não se tornou menor desde então. Na madrugada entre o falecimento e o funeral, eu escrevi um elogio fúnebre (do inglês eulogy, que traduz muito melhor o teor do texto), que li na tarde do dia seguinte para os familiares e amigos presentes, e que espero tenha ajudado um pouco com a dor da perda. Como aprendi com a minha avó, histórias foram feitas para serem contatas, e não guardadas. Por isso deixo aqui o texto, para que possa ser lido e compartilhado.


Foto tirada pelo meu tio José Carlos Branco.


 

Quando penso na minha vó, sempre me vem a mente uma mesma cena. Essa cena se repetiu infindáveis vezes ao longo dos anos, e sempre corria mais ou menos da mesma forma. Eu saia do meu quarto, ou mais recentemente chegava da faculdade, e sentava com ela pra tomar um café, fosse de manhã, de tarde ou bem de noite. Ela gostava de ficar na cozinha, especialmente quando era mais nova e tinha energia sobrando pra fazer de tudo um pouco no fogão, então encontrar ela por lá não era raro. Mas não é isso que tornava a cena especial. A magia estava no que as vezes acontecia logo depois: quando minha vó sentava em uma cadeira e começava a contar algumas das suas histórias.


As histórias da Dona Ignêz vinham em todas as variedades. As vezes ela contava da infância em Garuva, da época em que morou num casarão de pedra na beira do mar, porém sem nunca chegar a molhar os pés na água. Contava dos anos que passou na fazenda, correndo pra todos os lados com os irmãos e comendo todos os tipos de frutas que cresciam por lá. Contava dos anos que passou no grupo escolar, de como as freiras eram rigorosas e ao mesmo tempo gentis, e da vez que elas levaram a turma para visitar o rio e mostrar as pedras brilhantes nas margens. Ela dizia que eu e meu tio herdamos dali nosso gosto por pedras, ou rochas como aprendemos a chamar depois; que era coisa de família.


Ela contava de quando veio para Curitiba, e como, ainda muito nova, já trabalhava duro. Morou uns anos com a irmã mais velha, a falecida Dona Ida, a quem ajudava a cuidar da casa. Contava como pegava o bondinho todo dia para ir para o trabalho, e de como o motorista esperava ela quando se atrasava. Contava de quando almoçava um sanduíche com linguiça blumenau na padaria, o seu favorito, ou um cachorro-quente no Bar Triângulo, tudo ali perto.


Ela ficava horas e horas contando do tempo que morou no Gulangue, numa grande casa de maneira que ela dizia ainda estar lá, no mesmo lugar. Contava da vez em que um dos meus tios queimou o dedo no fogão a lenha porque queria pegar a “pedrinha brilhante”, e de como ele nunca mais tentou depois disso. Contava de como tinha que deixar as camisas do meu avô no sereno a noite inteira para engomar e passar dia seguinte. “Ser dona de casa não é mole” ela dizia, ainda mais naquele tempo.


Depois de lá, ela e a família foram morar no Jardim Santa Bárbara, hoje Jardim das Américas. Contava como na época que chegaram tinha só meia dúzia de casas espalhadas e mato pra todo lado, e de como tinha que pegar um ônibus até a Praça Ozório para buscar as compras do dia. Contava do Maicon, cachorro da família, que adorava se esgueirar pelas frestas do muro para pedir uns restos de carne no açougue na frente de casa, e de como “aquele sim era um cachorro bom.”


Mas de todas as suas histórias, a minha favorita sempre será a história da Guigui. Importante ressaltar aqui: tiveram duas Gigis. Eu conheci a segunda, a quem, em toda a criatividade da minha mente de 8 anos de idade, batizei de “Guigui 2”. Ela era um pardalzinho fêmea, daqueles marrons bem pequenos. Lá pela hora do café ela vinha bem devagar se aproximando da porta, sempre dançando, e lá ficava, esperando, até que minha vó jogasse um pedacinho de pão pra ela comer. As vezes ela trazia amigos, o que forçava minha vó a jogar mais pedacinhos de pão pra eles. Eles comiam até se encherem todos, pra depois ir tomar banho num dos potes de água que minha avó deixava pra eles no quintal, e irem dormir. Fosse chuva, sol, frio ou calor, bastava a porta aberta pra Guigui estar por lá. Mas claro, ela não foi a primeira. Foi num dia perto do final de ano, um pouco depois de começarem as férias, quando perguntei para a minha avó quem foi a primeira Guigui. E foi então que ela me contou essa história pela primeira vez.


Um dia, meus tios encontraram um ninho espatifado num dos cantos do terreno, com uma filhote de passarinho bem pequena ainda viva. Por não aguentar deixar o bichinho desamparado, minha vó decidiu traze-la pra dentro de casa e cuidar dela. Lá, pegou uma caixinha de papelão, forrou com uns panos bem macios, e deixou de ninho pra passarinha, no canto da mesa da cozinha. Batizou a pardal de Guigui, e cuidou dela do jeito que só a Dona Ignêz sabia. Todo dia ela e os filhos alimentavam o filhotinho, no começo com um conta-gotas, depois com miolo de pão bem amassado, depois alpiste.

Os dias passaram, e logo a Guigui estava firme e forte, pronta para aprender a voar. Então, minha vó, com toda a paciência e o cuidado de uma mãe, literalmente tomou a tarefa com as mãos: por várias e várias vezes, segurava ela nas mãos e a soltava bem devagar, até ela começar a bater as azas. Não demorou para a Guigui começar a voar pela cozinha e, depois, ao redor da casa. Ela passeava por todo o terreno durante o dia inteiro, mas sempre voltava para sua caixinha para descansar e fazer um lanche. Depois de um tempo, Guigui começou a acompanhar minha avó pela casa, indo com ela até o varal ou ficando com ela quando ela lavava roupa no tanque, ou mesmo quando ela saia de casa. Sempre que minha vó ia as compras, lá ia Guigui com ela até a esquina, onde pacientemente aguardava até ela voltar. E foi assim por um tempo: minha vó acompanhada de seu pardal. Isso até a chegada da primavera.


Nessa primavera, os pássaros voavam e cantavam por todos os lados, todos muito agitados e eufóricos. Num dado dia, minha avó saiu como de costume para ir a padaria, e logo atrás foi a Guigui, até a esquina. Mas ao voltar, algo estava diferente. Quando minha vó voltou, viu que a Guigui não estava empoleirada num galho ou no muro como ficava, mas voava de um lado para o outro, impaciente. “Eu quero ir com eles” ela falava para minha vó, e voava de um lado para o outro. “Eu quero ir com eles” ela falava para minha vó, como se não quisesse deixá-la para trás. “Eu quero ir com eles” ela falava para minha vó, como se partir fosse muito difícil. “Eu quero ir com eles” ela falava para a minha vó, sem saber o que fazer. E minha vó, em toda a sua sabedoria, e com um sorriso no rosto, olhou para a Guigui e disse “Vai lá Guigui, que seu lugar é com eles”. E então a Guigui pousou no seu ombro, e a olhou com olhos tristes, como se falasse “Adeus Dona Ignêz, e obrigada por tudo”. E lá foi com os passarinhos que a esperavam.


À minha avó, Dona Ignêz Luzia Branco.

12 de Janeiro de 2019.

1
2
bottom of page