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Ontem, meu avô, Lourival Branco, em seus 89 anos, faleceu. Deixo aqui o texto que li hoje no seu velório. Espero que traga um pouco de conforto para quem precisar.

Foto do meu avô em seu Corcel 76, tirada pelo meu tio José Carlos Branco não muito tempo atrás.


 

Para os egípcios, a morte é senão uma das muitas transições em meio a jornada eterna da alma. O sah, o corpo espiritual, deixa o khet, o corpo material, e é levado por uma barca solar até o Duat, o Mundo dos Mortos. Lá, sob o sol da meia noite, o sah precisa cruzar os Sete Portões espalhados pelo infindável deserto de areias negras, enfrentando as mais diversas provações, para então chegar ao Tempo de Osiris, onde o derradeiro julgamento será feito. Sob o implacável olhar de Anubis, Deus dos Mortos, é feita a pesagem do coração. Os 42 deuses do Duat ouvem as confissões da alma, e o coração é pesado contra uma única pena de Maat, Deusa da Verdade e da Justiça. Caso o coração se mostre mais leve que a pena, Tooth, Deus da Escrita, registra o valor da alma, e lhe concede passagem para Aaru, o Mundo Perfeito, onde a sah permanecerá até se fazer um com um novo khet, iniciando o próximo ciclo de reencarnação.


Para os hindus, a morte não é algo a ser temido, pois a morte é apenas o fim do corpo, e não o fim do ser. O corpo é apenas um veículo para a alma, uma máquina feita de energia natural com duração finita. Ao chegar ao fim de sua duração, a alma abandona o corpo e o troca por um novo, tal qual um homem troca de vestes quando estas se tornam inúteis. Este é o samsara, o ciclo eterno de morte e nascimento, pois para aquele que nasceu, a morte é certa, e para aquele que morreu, o nascimento é certo. Assim disse Sri Krishna.


Para os budistas, a morte representa a libertação dos limites do corpo, das amarras do tempo e do espaço. Após a morte, a consciência continua, e a alma entra em um estado intermediário até que o acúmulo do karma nas vidas passadas leve ao renascimento ou à iluminação. A morte também é o fim da consciência, pois na morte não há pensamento, e sem pensamento não há consciência. A morte é tal como é a vida, é uma transição; a morte representa uma de várias mudanças, sem um início e sem um fim, que integram o infinito da existência. São muitas as interpretações que existem para a morte, porém são poucas as pessoas capazes de apreciar todas, e tirar delas alguma lição. Meu avô foi uma delas.


O senhor Lourival Branco foi um homem excepcional. Oriundo de família simples, conquistou muito em sua vida. Pai de cinco filhos, e depois de mais dois, bebeu de todas as fontes de conhecimento as quais teve acesso, e fomentou a sede pelo saber em todos que o conheceram. Ao mesmo tempo culto e popular, refinado e simples, racional e místico, fez da junção de opostos uma arte.


Sua sede por conhecimento pode ser apenas comparada a da própria Grécia antiga, e tal como ela, não se limitou apenas ao campo das ideias. Em suas palavras, “o corpo é o templo da alma,” e é merecedor do mesmo tipo de zelo. Atleta desde jovem, Lourival sempre teve amor pelas atividades físicas de todos os tipos. Seu gosto era tão grande que transformou-o em profissão, escolhendo para si a missão de ensiná-lo às gerações por vir. Contudo, isso não bastava. Sua sede pelo conhecimento era tamanha que tornou-se para as humanidades tal como um naturalista é para as ciências naturais, e abraçou diversas áreas; foi professor de educação física, geografia, história e filosofia, profissão pela qual tinha grande paixão. Hoje, ao ver meus próprios alunos, percebo como essa paixão era contagiante.


Seus gostos pessoais não foram menos diversos. Por toda a vida, alimentou um profundo apreço por todas as formas de cultura. Das esculturas gregas às animações modernas, apreciou de tudo um pouco. Tinha seus favoritos, e não passava um dia sem fazer menção a algum filósofo grego, pintor renascentista, compositor clássico, ou cineasta europeu. Fez dessas preferências manifestações físicas, e preencheu sua casa com os mais diversos exemplares materiais desses gostos. No cerne de tudo, o objeto que considerava mais sagrado: a biblioteca. Cultivou uma seleta coleção de livros dos mais diversos temas, aos quais dedicava enorme cuidado. Tinha grande predileção por misticismo, incluindo não só exemplares de livros sagrados como a bíblia e o livro egípcio dos mortos, como também escritos de grandes gurus orientais. Além desses, possuía uma grande diversidade de enciclopédias, muitas das quais tratando de história e arte. Ao olhar para as estantes de livros que cobrem as paredes de casa, não consigo deixar de pensar em sua influência.


Nos momentos mais reflexivos, trazia citações de algum de seus místicos favoritos, sabedoria essa que se refletia mesmo nas mais simples ações. “Eu não sou o corpo, mas o ser que habita o corpo,” dizia, “por isso não vou tomar banho, mas sim dar banho ao corpo.” Em outros momentos, dizia que “as pessoas não sabem ouvir; elas fingem que ouvem, quando na verdade estão preparando suas respostas para então serem ouvidas.” Se mais pessoas se dessem o tempo de refletir sobre essas palavras, com certeza muitas discussões desnecessárias seriam evitadas.


Também nutria uma interpretação única dos escritos católicos, que compartilhava sob a forma de parábolas. Segundo ele, “a quem tem, será dado mais, e à quem não tem, o pouco que tiver será tirado.” Também dizia, com indignação, que “numa casa onde houver seis, três estarão contra três; pai contra filho, filho contra pai, mãe contra filha, filha contra mãe, irmão contra irmã e irmã contra irmão.” Por muito tempo, essas citações me incomodaram, por gerarem muito mais dúvidas do que traziam de respostas. Pouco eu sabia que essa era a intenção, e que são poucos os ensinamentos mais valiosos do que a necessidade de sempre se questionar o que se ouve.


Embora profundamente dedicado às ideias, meu avô também foi um homem muito prático. Tinha uma paixão singular por seu Corcel 76, o qual limpava religiosamente quase todos os dias. “Cuide bem das coisas que tem, pois assim às terá por toda a vida,” dizia com o carinho único que só aqueles que muito batalharam pelo que tem conseguem demonstrar. Também valorizava muito a organização. Sobre isso, dizia que “cada coisa tem seu lugar, um lugar para cada coisa.” Para ele, uma pessoa verdadeiramente organizada “poderia entrar em um quarto escuro, ir até o gaveteiro, tirar uma peça de roupa e vesti-la com a total certeza que era a peça que buscava.” Fico feliz em dizer que hoje consigo fazer isso.


De suas várias citações, talvez minha favorita seja a seguinte “rápido, rasteiro, curto, de primeira, e na descida.” Por detrás do tom jocoso, essa frase diz muito. Um dos vários saberes imbuídos nela é igualmente expresso por outra de suas célebres frases: “a cada coisa, o seu tempo; nem mais, nem menos.” Meu avô viveu uma vida longa e rica em experiências de todos os tipos. Não foram poucas as adversidades, nem tampouco as vitórias e conquistas. Tenho certeza que nesse momento, enquanto encara o julgamento de Anubis, o karma fará a pena pesar mais que o coração, abrindo assim as portas para que o ser atinja a iluminação no reino dos céus.


Vô, descanse em paz.


Ao meu avô, Lourival Branco.

31 de Julho de 2020.


Foto de José Carlos Branco.

Faz um ano que a janela dessa foto não vê ninguém em seu batente. Ela ainda é aberta pelas manhãs, e fechada ao cair da noite; as cortinas ainda balançam ao vento, mas não mais da mesma forma. Não mais pois a pessoa que fazia isso, que preparava o café todas as tardes e sentava na cozinha olhando os pássaros voando pelo quintal, não está mais lá.


Minha avó foi uma pessoa excepcional, e faz uma falta enorme. São nas pequenas coisas que isso mais se mostra: no silêncio da casa a tarde, sem o rádio que ela sempre ligava ao entrar na cozinha; na mesa desarrumada para o café da tarde, que ela fazia questão de arrumar; nas cortinas abertas da sala, que ninguém se importa em fechar. São tantas pequenas coisas que listá-las me parece impossível.


Antes de continuar, um comentário: as pessoas que falam que "as saudades passam" ou que "o tempo cura todas as feridas" estão, sem excessões, ou mentindo ou alimentando uma grande ilusão coletiva. As saudades se mantém, isso se não crescerem. Contudo, o tempo trás algo incomparavelmente mais importante e útil: sabedoria. Os dias se tornam semanas, que se tornam meses, e sem perceber aprendemos várias coisas; adquirimos várias ferramentas que tornam suportar as saudades mais e mais fácil.


Nesse ano, uma pessoa muito sábia me disse algo um tanto simples, mas que muito me fez pensar. "Não podemos ver a morte como uma perda, mas sim como o final de uma vida bem vivida." Não tivemos uma perda ano passado, mas testemunhamos o final de uma belíssima história, que incluiu um pouco de tudo; uma história que continua com cada um de nós, nos ensinamentos que nos foram passados, e nas memórias que carregamos conosco.


O texto que escrevi ano passado está disponível aqui. Espero que traga um pouco de conforto aqueles que precisarem, e que passe algumas das lições que minha avó me ensinou.

This has been a difficult year. Bad news are far from being sparse. Quite on the opposite hand, in fact. Bad news seemed to be the only thing happening for the first half of this year. A seemingly endless succession of tragedies, one aiming to overcome the previous one in a blaze of glory.


It started with the worst thing it could possibly happen, and yet one of the most common things that can happen to anyone: death. I've lost someone extremely important, someone central to my life and to whom I own much of what I know and who I am today. It came out of nowhere, and was finished before anyone could even start to process what happened. At least it was fast.


Following that, a huge wave of chaos started to engulf my surroundings, so slowly that it only became apparent when it was too late. The small rituals scattered through the day slowly begun to fade. The afternoon coffee started to taste different, the noises in the house started to change, the colours that were once so common became less vibrant. The house became more silent, more empty. Time was striking, as it always do, but for the first time it took something I love.


It is hard to grasp when this sort of thing happens for the first time. Although my house was still there, as it stood for decades past and will remain for decades to come, my home was gone. In its place, a mere ghost, a pour depiction of things past, an afterimage of a scene long gone, that will become fainter overtime. For the first time I felt homeless, devoid of a safe heaven to regain my strength.


Change never felt so frightful, so unavoidable, so intense; and, yet, never felt so necessary. To live is to change, and not always when we chose so. Months after, and it still feels like a fresh wound. It may never heal completely, and will never be forgotten. The pain will always be there, for as long as I live. But out of that, of that sadness, of that sense of loss, good things are finally starting to grow. Companionship, respect, family. A new start.


Things will remain as they always do: changing. Not for the better, or for the worst, but turning to something different. And only the future may tell us how much.



Happy birthday grandma, and may your soul rest in peace.

Curitiba, November 2019.

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